
A primeira vez em que o Ice-Nine foi descrito ocorreu por meio do romance Cama de Gato, de Kurt Vonnegut, publicado em 1963. Naquele ano, Vonnegut citava o Ice-Nine como uma alegoria da destruição que os avanços da ciência moderna poderiam ser capazes de realizar em escala global, num cenário em que ainda se vivia uma Guerra Fria. Na ficção, o Ice-Nine seria uma variação alotrópica do gelo que derreteria a uma temperatura aproximada de 46 graus Celsius e que funcionaria como catalisador para a solidificação de demais líquidos em temperatura ambiente de forma contígua e contínua. Pequenas amostras de tal substância seriam capazes, portanto, de congelar oceanos inteiros e de gerar uma catástrofe em escala global, modificando a temperatura da Terra e impondo uma escassez de água potável que não houvesse entrado em contato com o Ice-Nine — o que levaria a um processo de ameaça de extinção de várias espécies no planeta, inclusive do próprio ser humano. O inventor da substância, Hoenniker, vítima de morte da própria invenção ao ingerir o Ice-Nine, não mensurou o tamanho da tragédia que tal empreendimento custaria à humanidade e aceitou o desafio do gerenciamento militar-administrativo dos Estados Unidos em desenvolver um composto químico que permitisse desatolar tanques de guerra de extensos lamaçais.
No entendimento contemporâneo, James Rickards, com a obra O caminho para a ruína, de 2016, sugere o Ice-Nine como um fenômeno de congelamento de ativos em escala global (por meio de fechamento de caixas bancários ou interrupção de saques) por causa da impossibilidade de os bancos centrais reliquefazerem o sistema econômico na próxima crise financeira mundial depois de 2008. Se a vacina para crises econômicas no passado foi a impressão de dinheiro, no momento contemporâneo, segundo Rickards, compreende-se que a política monetária já utilizada apenas serviu para comportar um inchaço maior de bolhas econômicas e atrasar, temporariamente, a inevitável crise porvir, ampliando dívidas acima de crescimentos econômicos esperados. Nesse sentido, a solução Ice-Nine, de quarentena de créditos, na perspectiva de Rickards, é a única opção a ser implementada em um cenário em que o afrouxamento monetário multiplicou o surgimento setorial de novas bolhas (perigosamente interligadas) e fez expandir ainda mais outras já preexistentes.
Como uma das semelhanças, o Ice-Nine de Rickards, tal como o Ice-nine de Vonnegut, congela apenas as moléculas adjacentes: pelo fato de os mercados financeiros serem sistemas dinâmicos complexos, a irradiação do fenômeno do congelamento se dará em círculos concêntricos a se expandirem cada vez mais e ampliando suas zonas de contaminação. Rickards vislumbra a solução Ice-Nine como uma metodologia já planejada e operada por elites financeiras e bancos centrais que, embora seja descrita como temporária, de tempos em tempos, poderá ser acionada a fim de que o congelamento possa proporcionar o alocamento de inevitáveis perdas em crises cíclicas ao mesmo tempo em que se arquitetam estratégias para tornar o sistema líquido novamente. Com isso, o Ice-Nine sinaliza para o entendimento das crises econômicas de larga escala como eventualidades previstas pelo próprio modus operandi do sistema financeiro econômico que, na engenhosidade de permanentemente impulsionar liquidez e promover inflação, deve agregar um remédio amargo para a contenção (redirecionamento) das perdas, ou seja, o Ice-Nine não combate as causas da crise econômica nem é uma solução definitiva para a modificação da engenharia financeira contemporânea: o Ice-Nine é um mecanismo de pausa e desaceleração para que as crises advindas do estouro de bolhas especulativas não avancem de modo a comprometer a lógica de expansão de capital.