No capítulo III do livro V da obra Dos seis livros da república, de 1576,  Jean Bodin discutiu as consequências de os herdeiros legítimos terem seus bens confiscados devido à condenação por crimes imputada aos seus pais. Na perspectiva de Bodin, tanto considerando o direito natural como o direito divino, o patrimônio pertence aos filhos, e não cabe a esses suportar a pena dos seus pais. O teórico político afirma que esse tipo de confisco é uma das causas que reduz os sujeitos à extrema pobreza e que, a cada pessoa confiscada, surgem duas ou três pessoas piores do que aquela que perdeu sua propriedade e sua vida. Nesse sentido, Jean Bodin declara que, ao invés de reduzir o número de criminosos e garantir a segurança do bem, produz-se, diametralmente, o efeito oposto.

No capítulo inicial de Moll Flanders, de 1722, o romancista inglês Daniel Defoe retoma a questão tratada por Bodin ao contar, em sua narrativa, que a infância vulnerável da protagonista favoreceu seu perfil criminoso. No trecho seguinte destacado, indo um pouco mais além, Defoe critica a ausência de proteção do governo inglês aos órfãos de pais condenados:

“Disseram-me que numa nação vizinha, na França ou noutro lugar qualquer, não sei bem, existe uma ordem do rei a respeito do condenado à morte, às galeras ou à deportação. Caso o criminoso deixe filhos, geralmente sem recursos, porque ele é pobre ou teve seus bens confiscados, essas crianças são imediatamente postas sob a proteção do governo, numa instituição de caridade denominada ‘orfanato’, onde são educadas, vestidas, alimentadas e instruídas. E, quando chega a época de saírem, são empregadas como aprendizes ou domésticas, estando então aptas a ganhar a vida honestamente, através de suas habilidades.

Se esse fosse o costume de nosso país, eu não teria sido uma moça desolada, abandonada sem amigos, sem roupas, sem nada, sem ninguém que me auxiliasse, como aconteceu, razão por que eu fui não somente exposta a grandes desgraças, antes mesmo de poder compreender minha situação ou de saber como remediá-la, mas também levada a uma existência escandalosa em si própria e cujo curso normal leva, de uma só vez, a alma e o corpo a uma rápida destruição.

Mas aqui as coisas eram diferentes. Minha mãe foi declarada culpada do crime de um roubo insignificante que mal merece ser contado: ter encontrado a ocasião de tomar três peças de fino tecido de Holanda a um certo negociante de Cheapside. Os pormenores são demasiadamente longos para serem repetidos, e eu os ouvi narrados com tanta diversidade que não estou certa de qual tenha sido a versão exata.

Qualquer que seja ela, todos concordam num ponto: minha mãe apelou para seu ventre, e, tendo sido verificada a gravidez, obteve uma suspensão da pena por aproximadamente sete meses; mas, depois que ela me deu à luz, mandou-se executar seu primeiro julgamento, como me foi dito. Ela conseguiu o favor de ser deportada para as plantações e me abandonou, quando eu tinha cerca de seis meses; e em péssimas mãos, como será fácil reconhecer.”

(DEFOE, Daniel. Moll Flanders. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.19-20)