O PROJETO
O Dicionário de Retórica da Economia ora proposto pretende analisar de que maneira figuras de retórica ou estratégias consagradas à caracterização da narratividade literária compuseram explicações sobre conceitos da área econômica e como tais contribuíram para a construção de efeitos de verdade em meio a um cenário de disputa pela hegemonia interpretativa do fenômeno nos discursos sobre teoria econômica. É possível estabelecer que o aumento na recorrência do uso de figuras de retórica pelos economistas em tempos atuais como metodologia para a realização parafrásica sugere que a preocupação em empreender um discurso mais inteligível para um público mais amplo tanto parte de uma necessidade discursiva da ciência econômica, que se ajusta a novos canais de comunicação e públicos diversos, como também da emergência dos cidadãos leigos na linguagem técnica da Economia, que se vêem pressionados a entender os fenômenos econômicos que tanto influenciam suas vidas.
A ciência econômica, há tempos, utiliza figuras de retórica para compor seu código com uma autoridade representativa. Exemplos disso podem ser citados a todo momento em que se forjou uma teoria ou um conceito na área da Economia. Em tempos mais distantes, importantes terminologias ou arquinarrativas da ciência econômica ocorreram endossadas por figuras de retórica e se colaram ao discurso econômico de modo a influenciarem até as atuais conduções institucionais de gestores no setor econômico ou ainda a demarcarem posições distintas nas discussões sobre o tema da Economia. Como exemplos, a alegoria da mão invisível, de Adam Smith, em 1776, serviu para ilustrar a explicação dos autoajustes e das autorregulações dos mercados, que serve de suporte às teorias neoclássicas hodiernas. A alegoria das bolhas, de Charles Mackay, em 1841, funcionou para discutir a perigosa instabilidade dos preços de ativos que sobem acima do valor intrínseco por causa de um delírio especulativo e coletivo – alegoria recorrentemente utilizada na análise dos mercados financeiros ainda nos tempos atuais. A hipérbole do consumo conspícuo, de Thorstein Veblen, em 1899, cumpriu o objetivo de explanar a atividade de excesso da ação consumista com a finalidade de exibir distinção de status por meio da compra de produtos com preços elevados que conferem prestígio social e demarcam diferenças de acúmulos de renda dos consumidores – atualmente, tal figuração derivou explicações do estímulo a desejos de consumo por status através de dívidas e de possíveis distorções na qualidade de avaliação de empréstimos por agentes concessores ou intermediadores de crédito visando à maximização do lucro. O jogo de antíteses foi operado por John Maynard Keynes, em 1936, que refutou os principais fundamentos da economia clássica ou austríaca, como a lógica do equilíbrio econômico, o autoajuste de salários pelo mercado, a concepção do incentivo ao gasto público como promoção de inflação e a lei de Say, contrapondo-os, respectivamente, ao desenvolvimento da concepção de dinamismo econômico, de desemprego involuntário, de multiplicador keynesiano e dos prêmios de liquidez – medidas de intervenção e de revisão de mecanismos reguladores da Economia, em tempos de crise, que sofrem forte apelo do pensamento keynesiano, como aconteceu, por exemplo, na crise financeira de 2008.
Quando 15 de setembro de 2008, data do colapso do Lehman Brothers, ocorreu, vários estudos recentes da ciência econômica (revestidos por figuras de retórica) foram destacados ou gerados com a finalidade de analisar o fenômeno do estouro das bolhas dos ativos de hipotecas imobiliárias e o fracasso das estratégias de securitização implantadas pelos bancos de investimento estadunidenses. De todas essas conjecturas esboçadas por pensadores atuais, algumas foram bastante consideradas para o debate da área econômica em 2008 e nos anos seguintes.
Como ilustrações possíveis, a alegoria do cisne negro, de Nassim Nicholas Taleb, de 2007, serviu para comentar os momentos de incerteza no mercado derivados da nulidade de previsão de uma circunstância rara, com uma alta capacidade de impacto na coletividade e de provocar narrativas retrospectivas. A metonímia dos maus financiamentos (ampliando unidades especulativas e Ponzi), de Hyman Minsky, de 1992, funcionou para explicar como a contaminação de certos regimes de financiamento pode gerar instabilidade na economia. A alegoria do efeito pipoca, de Henry Paulson, de 2013, cumpriu o objetivo de auxiliar a afirmação de que a expansão da crise derivada dos subprimes deu-se pelo grau de interligação, de internacionalização e de práticas conjugadas que existe no sistema bancário global. A tradução hiperbólica da teoria do estoque monetário, realizada tanto por William T. Still, em 1996, como pelo ativista Peter Joseph, em 2008, foi apresentada para descrever o processo inflacionário, não como uma irregularidade, mas como um mecanismo de controle da ordem produtiva global por meio das corporações bancárias. O contínuo uso da ironia por Joseph Stiglitz, em 2010, foi utilizado para apontar como as posições do mainstream econômico ditado por Wall Street e Washington equivocarem-se ao desprezar as lições keynesianas e a prática da regulação responsável na economia. A alegoria do minotauro global por Yanis Varoufakis, de 2011, foi utilizado para explicar como o mecanismo global de reciclagem de excedentes no âmbito das trocas comerciais mundiais arquitetado por Washington entrou em colapso a partir da ausência de autocontenção das autoridades estadunidenses em relação ao excesso de financeirização dos fluxos de capital advindos de outros países para Wall Street.
MISSÃO DO PROJETO
Ainda que fenômenos econômicos sejam comentados diariamente pelos meios de comunicação de massa e seja notória a influência que tais fenômenos possuem na vida do cidadão brasileiro, é preciso atestar a insuficiência de orientações sobre Economia dadas pelos ambientes escolares no Ensino Básico e como essa lacuna perdura pela vida adulta pós-escolar da maioria dos brasileiros.
Em meio à necessidade de compreensão da realidade econômica por um prisma multidiscursivo e por uma metodologia transdisciplinar, é preciso apontar que as políticas relacionadas à educação financeira iniciadas pelo Decreto Presidencial 7397, de 22 de dezembro de 2010, fracassaram ao não conseguirem reverter os maus desempenhos de alunos de 15 anos nos resultados dos exames do Pisa sobre letramento financeiro aplicados em 2015 e 2018 (OECD, 2017), (OECD, 2020) – o que levou à criação do Decreto Presidencial 10393, de 9 de junho de 2020, revogando o anterior, e à substituição da Comissão Nacional de Educação Financeira (com presidência cativa pelo MEC) pelo Fórum Brasileiro de Educação Financeira (com presidência rotativa entre Bacen, CVM, SUSEP, STN, SEPRT, PREVIC, Senacon e MEC). Ainda que o relatório do Banco Mundial The Impact of High School Financial Education afirme que o estabelecimento de discussões de temáticas econômicas de forma ampla no sistema educacional brasileiro favoreceria o aumento da poupança e a criação de uma cultura de planejamento de gastos e de avaliação de negociações, com um efeito de capilarização desse conhecimento ao ambiente doméstico-familiar desses alunos (BRUNH et al, 2013), as políticas educacionais do Brasil encontram-se demasiadamente atrasadas e a nova Estratégia Nacional de Educação Financeira está em estágio de experimentação em Plataforma Digital com uma pretensão de capacitar 500 mil professores do Ensino Básico. Nesse contexto, faz-se necessário que pesquisas das universidades brasileiras possam estabelecer diálogos com as políticas nacionais na área de educação financeira de modo a aperfeiçoar as formas de implantação dos temas econômicos em ambientes escolares sem que se instaure uma interpretação unidimensional a respeito de tais assuntos.
Sendo assim, uma abordagem multidisciplinar e polissêmica para a introdução da educação econômica no país possibilitará um interesse maior dos jovens (além de impulsionar uma forma mais independente e autônoma) em se pensar os fenômenos econômicos. A construção de produtos que estimulem a educação econômica nas escolas ou na sociedade brasileira de uma forma geral potencializará o exercício de uma cidadania mais participante em relação à discussão sobre o desenvolvimento socioeconômico do país.
Como uma ação paralela e diferenciada das recentes estratégias do Governo Federal de implantar um Programa de Educação Financeira em parceria com a Comissão de Valores Mobiliários, a pesquisa em questão reúne um conjunto de pesquisadores de universidades de diversas áreas em rede (e com apelo a uma metodologia transdisciplinar) para assumir o debate em relação à criação de estratégias que possam enfrentar, ao mesmo tempo, as dificuldades do letramento financeiro e a aceitação direta de um discurso unidimensional a respeito da realidade econômica. Ademais, acredita-se que os resultados da investigação sobre Retórica, Literatura e Economia na contemporaneidade, em perspectiva dialogada, transdisciplinar e comparativa, poderão contribuir, por um lado, para a ampliação do conhecimento sobre as expressões da atualidade imbricadas por estratégias literárias (no caso aqui, os discursos econômicos); por outro, e, de modo especial, deverão contribuir para a problematização da própria construção da hegemonia ou da especialização dos discursos econômicos na contemporaneidade, adensando-se a reflexão e abrindo perspectivas de aplicação de estudos retóricos na Economia, em prol de uma metodologia que dilua fronteiras disciplinares e hierarquias culturais.