
Embora haja demais figuras de retórica no livro O mundo em queda livre, de Joseph Stiglitz, do ano de 2010, como metáforas, símiles e personificações, a que mais se destaca por sua recorrência e sistematização é a ironia. As quatro modalidades de ironia organizadas nessa publicação de Stiglitz estruturam um conjunto de contestações feitas à ciência econômica baseada na autorregulação do mercado, às ações praticadas pelos bancos de investimento e pelas agências de classificação de risco nos Estados Unidos e às ações do governo norte-americano diante do cenário da crise, ora de modo isolado, ora de modo combinado (ironias mistas). A primeira modalidade irônica, a ironia à ciência econômica: a) contrapõe-se às certezas de crescimento econômico por meio das teorias neoclássicas; b) sustenta que a insistência nas crenças neoclássicas faz perdurar o cenário de desemprego; c) comenta a má avaliação de créditos realizada por peritos da nova engenharia financeira; e d) discute a pouca significância atribuída ao fenômeno do desemprego pelas teorias monetaristas da Escola de Chicago. A segunda modalidade irônica, a ironia aos bancos e às agências de classificação de risco: a) critica a interpretação das instituições financeiras em relação à crise e o seu incentivo a medidas paliativas; b) contesta o discurso da essencialidade das megacorporações financeiras na economia estadunidense; c) comenta a assimetria de informações contratuais entre as partes envolvidas na operação bancária que há nos novos produtos; e d) discute a incompatibilidade estrutural existente entre a montagem desses novos produtos e as necessidades do público contratante. A terceira modalidade irônica, a ironia ao governo: a) comenta as falsas esperanças de mudanças econômicas mais consistentes com o governo de Barrack Obama; b) critica a ideologia do Estado mínimo por reconhecer que ela acaba por ser uma proteção aos interesses de corporações financeiras; c) desqualifica a capacidade dos membros que compõem a equipe econômica do governo Obama de operar mudanças e decisões difíceis na economia norte-americana por causa do grau de comprometimento com a ideologia dos mercados livres; d) aponta os efeitos negativos das operações de crédito planejadas e efetivadas no governo; e e) aponta como o governo subestimou o alcance da crise. A quarta modalidade irônica, a ironia mista: a) denuncia o processo de invisibilização de riscos e de transações por parte das instituições financeiras, apoiadas na manipulação da nova engenharia econômica; b) relata que o governo tem desenvolvido essa “contabilidade criativa” aprendida pelas instituições financeiras para ludibriar os contribuintes; c) comenta o processo de eufemização do discurso da crise de 2008 por parte dos porta-vozes do governo dos Estados Unidos ou de representantes de instituições financeiras; e d) ironiza o fato de terem sido contratados os mesmos economistas que contribuíram para o cenário de colapso de 2008 (com uma ideologia neoclássica marcada em seus currículos) a ocupar as posições que resolveriam a crise. A ironia de Joseph Stiglitz serve para dessacralizar o discurso hegemônico sobre economia por meio da zombaria e possibilita a ampliação das estratégias de captação de leitores como uma forma de tradução intralingual da linguagem econômica. De forma peculiar, a ironia de Stiglitz é circunscrita de uma recorrente apresentação de contextos com o intuito de combater possíveis assimetrias informacionais que poderiam ser provocadas pelo fechamento de grupos discursivos em torno do procedimento irônico. Ademais, o traço épico a envolver seus usos da ironia tende a eliminar a crítica como alívio pontual de tensões regido por um riso catártico. A ironia de Stiglitz, em meio à cena de evidente instabilidade econômica, fere a estabilidade discursiva do campo do saber na discussão da economia contemporânea e propõe uma releitura da realidade aos seus intérpretes. Pelo fato de a ironia não ser pontual ou mero recurso isolado a alguma enunciação – e sim um procedimento narrativo-discurso a reverberar em todo o texto – pode-se afirmar a preciosa capacidade estética que a ironia apresenta na tarefa de Stiglitz para a arrumação de seu cenário discursivo-ideológico. Além de potência organizadora, a oportunidade de se lançar como embate interdiscursivo, que mobiliza diferentes vozes, faz com que a ironia de Stiglitz também se apresente como proposta eficaz de discussão político-econômica nos campos de sua recepção. Contudo é no relevo da ambivalência que o procedimento irônico de Stiglitz mais consegue um resultado representativo. A ironia traz em si a falência e o renascimento, e o riso irônico carrega em si, portanto, a morte e a ressurreição; no caso de Stiglitz, o fantasma de Keynes ressurge para zombar e colocar todas as pretensões neoclássicas em estágio de falecimento – a metáfora de um morto renascido
que ri das coisas natimortas germinadas após a sua passagem arruma, narra e faz os viventes deste tempo assombrarem-se.